10.9.11

Um parágrafo para João.

Milk it
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Em todo velório João permaneceu calado. As lágrimas escorriam por dentro. O cheiro enjoativo de flores e cera de vela nauseava-o, queria fugir. Horas a fio imaginou-se deitado no chão, imiscuir-se, boa sentença. Imiscuir-se, sentia-se, por vezes, muito velho, por vezes, muito novo, de todo modo, incapaz. A ladainha chorosa de senhoras católicas o confortava e, ao mesmo tempo, nele impelia um ódio abstrato, incitavam João a gritar, bater chorar. Não. João imóvel, só faltou morrer. Os pés cravados no chão sugeriram-lhe segurança, enquanto os artelhos movimentavam-se impacientes dentros dos sapatos pretos. Na boca roxa, João conservava a posição que alertava, deixando bem claro, nada sairia dali. Em vão parentes, "entes queridos", olharam-lhe nos olhos, não era ali que as vistas de João estavam e ele sabia muito bem disso. As lágrimas escorriam por dentro. As unhas agarravam o fundo dos bolsos, o futuro lhe preocupava. O que era agora sua família? Um irmão que a tudo lhe dizia sim (conquanto ele o louvasse) e outro que absorvia seus mais venenosos comentários como um monge budista e, passado um tempo, avançava contra João como um touro insandecido, três sobrinhos ligeiramente entediantes que lhe eram como figurantes em uma cena, uma ex-mulher nada amigável e um filho, qual não se lembrava nem a idade. E o que deixava João louco é que ele a nada disso estimava. Quis obstinadamente cada uma dessas coisas, se esforçando pra assumir cada um daqueles papéis e agora, tendo seus sonhos em mãos, dispensava-os ao passado, lembranças que conservou como boas, nada mais. Apalpava a carteira no bolso, pensando que seu dinheiro envenenava-o. A culpa concerteza era dos cartões de crédito que o impediam de ver a quantia exata que podia gastar. Cego, João gastava mesmo. As noites de bebedeira e alegria eram financiadas por cada um daqueles dígitos impressos em alto relevo. Cravou os dedos no couro do objeto, talvez fosse aquela coisa a que João tivesse mais apego. Era mesmo o mais lógico, afinal toda sua importância vinha de seu dinheiro. Nas reuniões de família, organizadas em sua casa, não era pra apreciar seu senso de humor bonachão que todos apareciam, e sim, para lhe pagar uma dívida que João, seus irmãos, os sobrinhos, primos, tias, sabiam que com dinheiro não iria ser paga nunca. Essa dívida - não estou sendo simbólico, não houve mês desde que João começara a emburguesar que não apareceu um parente vomitando suas lamúrias, lamentações e revéses financeiros para nosso amigo - ao contrário do que muitos pensariam, apenas repeliu a figura de João da dos outros membros de seu "clã". Esses passaram então a apontar, pelas costas, dedos que culpavam João da cada infelicidade que os afligisse, como se a responsabilidade da desgraça alheia fosse inteiramente de seu sucesso na vida. João absorvia essa carga de acusação, absorvia e sua consciência resignava e murchava. Defendia com a alma a crença geral de que era um filho da puta, um bosta que teve sorte, apenas, e era seu dever, afinal sorte não é algo digno de vanglória alguma, carregar cada um daqueles entes fracassados e que não tiveram sobre suas cabeças uma gota da urina da Prosperidade. Se realmente pudesse, João iria... O teto alto da capela o irritava, as luzes fluorescentemente intensas o irritava. Mas fazia muito sentido aquela iluminação de centro cirúrgico, havia de ser exposto, mesmo, a cara de impassibilidade de alguns visitantes. Realmente turistas que sorriam e cumprimentavam. Sua parca experiência com velórios fez João pensar que era letra morta dizer "meus pêsames" ou "minhas condolências", bobagem, vereadores e outras pessoas que se julgavam importantes e dignas de aparecer num funeral cumprimentando todos, davam aquele abraço de piedade forçada, e gritavam, urravam, cuspindo na cara de João: MINHAS CONDOLÊNCIAS!!! Nele também as condolências fervivalhavam por cada um daqueles farsantes, porque arrastar a bunda até um velório pra fazer social é coisa de quem não tem nada na vida a não ser o sentimento prazeroso e indolente de ser a única merda cujo cheiro agrada as narinas bondosas de deus. Cada aperto de mão era uma alfinetada maliciosa na paciência de João, que queria pensar o contrário "Não, muitos daqui já passaram por perdas, devem realmente, comovidos pela empatia de compartilhar de tragédia semelhante, terem vindo aqui pra me apoiar, deixar uma nota de cumplicitude". E João se animou com essa idéia até um senhor que contava gostosamente uma piada a alguns metros atrás de João vir lhe apertar a mão com aquela cara porca de enterro e dizer que sentia muito por tudo. TUDO O QUE!? MORREU ALGUÉM AQUI!?. Na cabeça de João, eram essas as palavras mais sensatas que poderia proferir, mas preferiu silenciar. Silenciar, sempre. Seu irmão agora jogava o corpo sobre o morto, soluçando e gemendo cada vez mais alto, até o ponto de perceber que fazia barulho demais, então recobrava folêgo tocava as mãos do cadáver, olhava os olhos colados do defunto, alisava sua testa, então recomeçava o pranto. João parado, os artelhos agitados no sapato, sentia uma vontade profunda de chorar, mas as lágrimas escorriam por dentro, acumulavam-se nos pulmões, debilitavam a respiração. Era nescessário o líquido pras pessoas terem certeza de que sofria, era nescessário os olhos inchados de tanta água pra terem certeza de alguma lamentação, só que João era seco. Desértico, apalpou no outro bolso o maço de cigarros, levou um na boca e debochou de toda aquela merda. Árido, achou o significado daquilo no crucifixo fixado acima do caixão. Um jesus cristo esquelético, redentor e martirizante. O irônico é que sua cara foi deformada por metal fundido, a boca era uma mancha de ferro escandalosa e os olhos tristes pareciam tristes não pela cruz, mas pelo silêncio. João era aquele jesus mal feito e mudo, incapaz de proferir uma palavra, nem se ganhasse vida, João também não ressuscitaria no terceiro dia, com sua boca de metal derretido, resumido em mudez e estática. Olhava com raiva aqueles que testemunhavam um homem fumando onde não era pra fumar, e sentia mais raiva ainda vendo que ninguém se sentia apto a dizer "Não pode fumar aqui", ah se o fizessem... Aproximou-se do caixão e foi a única vez que olhou de verdade para o seu pai, não como o homem que lhe batia quando criança, repreendia-o quando adolescente e adulava-o quando adulto. Mas o homem que trabalhou vinte e oito anos como auxiliar num laticínio, gostava de beber, se separou da mulher depois da segunda traição descoberta e sonhava desde que casara em ganhar na mega-sena. Os planos de mudança com todo o dinheiro, iria dar fazendas de gado para cada neto e duzentos mil reais para cada filho, ele não ganhou. Mas ganhou uma hérnia de disco, uma depressão psiquiatricamente atestada, várias receitas de remédio pra cada dorzinha que sentia, indícios de mal-de-Alzheimer e agora, no finalzinho, um caixão de mogno muito bonito com um jesus cristo de boca de ferro derretido. Tocou nas mãos do pai, o último dos raros momentos de afeto entre os dois, tarde demais para ressentimentos ou desculpas, João repulgnava o fato de considerar escusar-se para um corpo. Deixou o cigarro cair no chão e saiu com a cabeça baixa, sem a mínima intenção de se despedir de alguém. O previsto para acontecer, previu facilmente, era que, saindo dali, moveria-se pra casa, abriria com toda tranquilidade do mundo a porta - pois cada ação lhe era cara - limparia os pés no tapete, descansaria os óculos na cômoda, e beberia - uma a uma - cada garrafa do bar, embriagaria-se aos prantos, engolindo a culpa em goles sonoros (não pelo defunto, mas porque se sentia culpado), pensando no quanto era um filho-da-puta e se amava por isso, olharia seu reflexo no espelho e se sentiria ridículo, desfigurado, farsante. Depois, vomitaria nas calças, no chão, nos braços, exibindo um sorriso anestesiado e satisfeito.
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All Apologies

10.7.11

Alma.

Alma acordou cedo, umas oito horas, pôs os pés nos chinelos almofadados e vestiu um robe azul bem clarinho. Acordou bem disposta, escovou os dentes e entrou debaixo da água quente do chuveiro. Enquanto se lavava, sentia satisfeita o líquido escorregar corpo abaixo, pensou no que iria fazer até o almoço, decidiu que iria comprar uma blusa que namorara a pouco tempo atrás numa loja do centro. Estampa de flores, muito bonita. Sai do banho, veste novamente o pijama e o robe. Em direção à cozinha, dá pouca atenção ao quadro da parede que ela mesma pintara, lembra muito bem que idéia tinha na cabeça quando o fez. Queria uma paisagem que a conquistasse sempre que olhasse para o retrato, conseguiu um campo de trigos e um pôr-do-sol muito bonito, mas nenhum dos dois cumpriu com o desejado por muito tempo.
Pegou um balde e um rodo na área de serviços, despejou Veja no balde azul e depois um pouco de água. Começou a limpar todos os cômodos da casa. O quarto do casal, o quarto das meninas, a sala de visitas, a sala mesmo, o escritório, os banheiros e a cozinha. Era mais ou menos quinze pras dez quando terminou. As meninas acordaram e agora assistiam desenho na sala, Alma também gostava de desenhos. Sempre achou fantástico animais falando e coisas impossíveis que aconteciam sem parar. Sentou-se um pouco no braço do sofá maior pra descansar, enquanto observava gostosamente seus anjinhos. Isabela e Mariana tinham, respectivamente, seis e nove anos, verdadeiros amores. Sempre faziam perguntas sobre tudo, e essa era a fase que a mãe achava mais bonita. Cheias de curiosidade, as crianças punham vivacidade em tudo que faziam, a mais nova ainda tinha medo do escuro e adorava coisas rosas. Mariana por sua vez era um pouquinho mais calada, gostava de atenção, mas quase nunca procurava por ela. Alma não sabia onde terminava seu amor pelas duas.
Passado alguns minutos, buscou no tanque um paninho pra tirar a poeira dos móveis. Limpou o raque, as prateleiras, a cômoda, a estante, a escrivaninha, tentando sempre fazer um trabalho perfeito. Realmente o fez, olhou com satisfação pra casa limpa, teve consigo que cada cômodo da casa, o jardim, as crianças e mesmo os afazeres domésticos eram exatamente aquilo que a alguns anos atrás almejara pra ela. Não ligava pros vários defeitos que sua vida tinha, se não apareceu nenhum ainda, é porque Alma realmente não se importava com eles. Mas bem, a casa estava limpa, e tinha algum tempinho com as meninas. Ajudou Mariana a fazer o dever de casa, era boa com matemática, enquanto Isabela desenhava várias figuras diferentes e mostrava pra Alma, que sorria e elogiava cada desenho com uma sinceridade que só as mães tem.
Na cozinha, cortou as cenouras em tirinhas e deixou-as cozinhando, aprontou o arroz e o feijão e fritou alguns bifes. Adorava aquele cheiro de comida sendo preparada, o aroma lhe trazia lembranças da primeira casa que morou, no sítio. O piso encerado, a brisa macia que entrava pelas janelas abertas, as costas e o vestido de ficar em casa de sua mãe. Alma sentiu saudade da grama verde na frente da casa de madeira e de ficar deitada lá, olhando as nuvens ou imaginando as coisas na cidade. Sentiu saudade das mãos sujas e duras de calo de seu pai, que suspendiam-na no ar quando esse chegava para o almoço. Ou da forma que mãe e pai discutiam durante a refeição, sempre sobre bobagens, falando do comportamento de uma ou outra pessoa. Sua mãe com uma paciência que aceitava tudo e seu pai com um senso de julgamento talhado na madeira. Gostava de olhá-lo enquanto ele bebia café e da forma que falava das coisas que fizera pela manhã. Cercas consertadas, bombas d'água arrumadas, bezerros que morriam de picada de cobra. A tudo Alma ouvia atenta, com uma admiração visível em seus olhos de criança.
O marido chegara, Carlos, a camisa branca, a calça preta e os óculos de armação redonda. O olhar terno e ligeiramente cansado. Professor, bom homem. Nunca vira-o dando aulas, mas podia imaginá-lo lecionando com sua voz grave e macia, enquanto percorria com os olhos pretos a sala toda. Casaram-se quando Alma completou vinte anos, depois de um ano e dois meses de namoro. Naquela época andavam de mãos dadas por onde quer que fossem, conversavam mais ou menos sobre tudo que imaginavam para o futuro e riam mais ou menos de tudo do presente. Alma amava-o, muito. Enquanto comia, pensou o que seria abandonar aquela família, a vida simples e bonita que levava. As cores e as coisas que tinha dentro de casa. As meninas. Carlos comentava as notícias do jornal, se indignando aqui e ali, com a indignação de um pai de família com trinta e dois anos e professor de ensino médio. A mulher escutava cada palavra, por vezes fazia companhia às críticas do marido e comentava também sobre o que as crianças tinham feito.
Depois do almoço, Carlos lavava os pratos enquanto Alma ajudava Isabela e Mariana a se trocarem para a aula. Se despediu delas no carro com um beijinho no nariz de cada uma, as duas sorriam. Ao marido, dispensou um leve beijo nos lábios e depois fechou o portão. Entrou em casa, pegou na cozinha uma cadeira e levou até seu quarto, alcançou na parte de cima do guarda-roupa uma mala de viagem. Pegou algumas roupas, dobrando delicadamente cada peça, ajeitou-as na mala. Guardou o perfume, algumas calcinhas, a roupa de dormir, a escova de dentes. Vestiu calça jeans, camiseta e sandália. Chamou o táxi. Enquanto esperava, sentou-se no sofá com a televisão ligada, revisando mentalmente se estava levando tudo o que precisava. Depois tirou umas roupas do marido que secavam no varal. Deixou-as em cima da mesa pra que essas fossem passadas assim que possível. Trancou a porta dos fundos, desligou a tv, o táxi chegara. No caminho até a rodoviária, Alma lembrou de novo da velha casa de madeira, da égua branca, Estrela, e das frutas que colhia no sítio. Lembrou do marido bem apessoado e cavalheiro, das crianças tão bonitas e angelicais. Realmente, Alma conseguira tudo aquilo que sonhou quando moça. Um bom marido, filhas lindas, uma casa aconchegante e própria. Tinha conseguido muita coisa, à base de muita Alma. Não hesitou um momento se quer, nunca pensara em outra forma de vida se não aquela. E agora, Alma sentia um vazio, um vazio que não era dela. Racional, sentimental, emocional. Vazio como o por-do-sol no campo de trigo.
Na rodoviária, minutos antes de tomar o ônibus ligou de seu celular para Carlos, que ainda não havia entrado em sala. Disse-lhe onde estava a carta e desligou o aparelho. Alma chorava sem fazer barulho, sem mudar de expressão, mas Alma inteira era lágrimas.
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Sem mais, nem menos. Ouça.

7.6.11

O Cu do Mundo ou Como Ir do Zero ao Zero.

Era março, abril, outubro, agosto. Podia ser qualquer mês do ano, estávamos sentados no teto de uns dos blocos em construção espalhados pela universidade, fumando maconha depois de assistirmos uma palestra com o título de "Civilização ou bárbarie", era uma boa palestra e se não fosse pelo petista pedante de jeito de falar escroto que ficava pedindo gestos afirmativos com a cabeça para os outros professores da mesa, ia ser melhor ainda. A crítica era boa, um apanhado geral da violência praticada no mundo e o descaso de nós, seres não-violentos (não sei em que lugar). Como eu disse, era uma boa crítica, mas não foi o suficiente pra eu deixar de pensar que a razão é só um instrumento do instinto. Sabe, os tubarões tem milhares de dentes, os jacarés uma mordida desgraçada, as vacas, uma carne boa de comer, nós temos a racionalidade que permite que façamos objetos que mordem, rasgam e matam com uma facilidade admirável, digna de livros. Mas esse não é o ponto, o ponto é que estávamos ali em cima de um bloco em construção, conversando sobre várias coisas, inclusive sobre a palestra, até que alguém começou a cantar uma música sobre uma viagem de cogumelo, e todos deram risada, era uma música engraçada, mas acho que levaram a sério demais o assunto, desliguei na parte em que o refrão era repetido pela quarta vez com o fim de que todos inalassem o humor que saía de cada verso, era engraçado, mas não era pra tanto. Deitado no concreto frio, com a cabeça recostada sobre a minha mochila, comecei a olhar o céu, mas não estava no céu, não era no céu que pensava, era num assunto, até agora, particular à Terra, a vida, ou melhor a morte. Me perdoem, de forma alguma a morte é particular à terra, muuuuuuuuuito pelo contrário, temo, temo mesmo, que vida e morte sejam as únicas leis intrínsecas de todo o cosmo. O mundo, as pedras, as pessoas, os animais, os meus professores, eu, você e a Dilma Rousseff, ou seja, todos, mesmo os robôs, se baseiam, de uma forma ou de outra, no fato de que irão morrer. Sabe, alguns até se matam por causa disso, é um assunto sério, pouca gente dá valor, não deviam mesmo. Mas eu tava nessa de discutir a vida, a morte, a minha vida, ou seja, o que eu vou fazer até me enfiarem num caixão e, por força da minha família, rezarem a porra de uma missa de sétimo dia (que já rezavam em suas cabeças), cantarem músicas velhas, fúnebres e religiosas a um ateu, enquanto o aparato de madeira em que fui enfiado é abaixado ao nível dos tão queridos sete palmos do chão. Pensando nisso, tentei traçar um paralelo compreensivo do que precisava fazer, algo que me aflige ainda agora, e naquela época, me acertava como um porrete, na cabeça, por pelo menos dois meses. Não consegui traçar um paralelo, conversei com um amigo meu, e nem era sobre isso, era sobre um outro amigo nosso, Diego, ele tem o péssimo hábito de mentir (mas não mentir pouco, mentir muito, muito-muito-muito-mesmo, sem nem um indício real de nescessidade, ele vai comprar pão e é capaz de dizer que foi comprar manteiga, só pra mentir, isso é sério), e se esse costume viesse sozinho taria tudo bem, mas não vem, vem com uma carência desgraçada, com uma vontade de ser amado, admirado, ser bonito, fazer sucesso e ter um orgasmo ao mesmo tempo. O resultado é que ele tem uma filha, anda cheio de achar que é gay (tudo bem se ele for gay, o problema é em achar isso, sei lá, parece uma outra onda que ele entrou, que nem tocar guitarra, andar de skate, fumar maconha ou beber - no final, ele não faz nenhuma dessas coisas direitos) . Pedro tentava defender ele, assumindo o fato de não suportá-lo, mas levantando a bandeira de que Diego era uma parte de nós que não queremos ver, uma parte que o mundo tenta esconder, na instiga de fingir perfeição. Eu concordava, claro que concordava, mas achava que aquele desgraçado em vez de ser posto na porra de um mural, deveria continuar tomando os remédios dele, enquanto não achava um jeito de superar o fato de ter perdido o pai com sete anos, de ter uma mãe que trabalhou a vida inteira e que por isso nunca entrou em detalhes quanto ao crescimento dele e uma irmã que com onze anos meteu um ou dois tiros lhe deixando com um pulmão pela metade. Pode parecer horrível, e é, mas não exime o fato de Diego ter dito a outras pessoas que aquele tiro ele recebeu numa viagem à São Paulo, onde num momento sombrio e heróico, fora alvejado pelas costas, sentindo apenas algo que parecia uma mordida. Eu tenho pena dele, também, todo mundo tem, até conhecê-lo e ver que problemas com o passado não são bons pra formação do caráter de ninguém, e esse é um fato lamentável. Voltando ao paralelo do que ser, Pedro e eu chegamos ao cu do mundo, isso o cu do mundo. Quando você para pra pensar em algumas coisas, desligando-se da moral, da ética em sociedade e do egocentrismo (não que eu tenha conseguido isso, de jeito nenhum - odeio essas partes que a gente tem que se enxer de ressalvas pra não parecer um convencido filho-da-puta e, mesmo assim, acaba parecendo - mas dá pra gente ter uma idéia boa das coisas quando isola esse monte de lixo que enfiaram na nossa cabeça desde criança e tenta pensar não com o "por que?" mas com o "por que não?"), você chega a um ponto onde todas as ações são legítimas, se você elimina os valores culturais, o que sobra? Acho que não existem sentidos de bondade, caráter, respeito, etc, que sejam intrínsecos, isso é velho mas, o que que a gente é pra dizer que alguém agiu errado, ou melhor, em qual pedra subimos pra se ter o direito de apontar pra uma pessoa e dizer "Vejam aquele homem! Ele vive errado!" ? Diego talvez fosse uma prova perfeita de que ao contrário do que muitos pensam, a maioria das coisas que somos não é nossa culpa. E esse é o cu do mundo, é quando você olha pro seu passado, pro seu futuro ou pro sôfrego e desprezado presente e vê que razão, sentido, compromisso e objetividade são coisas que o seu cérebro não vai conseguir sem muitos picos de ilusão. Então a cabeça vira uma enxorrada lamacenta, o finzinho dela, onde você vê móveis, sonhos, cadáveres e idéias sendo arrastados lentamente, levados, lentamente ao chão. A ética e a moral escorreram da minha cabeça, ali eu não era ninguém além de um ser apatetado, bobo por perseguir um ideal falido, achar o melhor de si, a fórmula da vida. Acho que sem religião ou algum pensamento fanático que coloque todas as pessoas em caixas com etiquetas dizendo o que elas são, eu não conseguiria. O cu do mundo.
Tinha chegado de um jeito suave e calmo, como o conhaque que eu bebericava no frio, ao limiar entre o porralouquismo e algum pensamento confuso sobre o que deveria fazer. Entrei nessa de horror por pouca coisa, era o futuro que assombrava, procurei pelo estoicismo, mas sabia que o ideal de homem colocado até agora, era machista, narcisista e com uma pitada de homossexualismo (pelo amor de Deus, percebam a escrotisse que é afirmar a heterossexualidade em cima de uma excitação pelo masculino, estabelecendo que é gay você pegar na mão de outro cara, mas não olhar o Brad Pitt como uma meta a se seguir). Não era o estoicismo, mas as respostas para o futuro, ser um homem que ganha muito mais que a galera de casa, trabalhar pouco, eu precisava assumir responsabilidades, várias delas, e o tempo me comia, o mundo era cheio de possibilidades onde só o verdadeiro esforço alcançaria. Pau no cu desse esforço. Assisti um filme, procurando por essa resposta, procurando, é verdade por mais idiota que fosse, o sentido da vida. O nome era Palermo Shooting (não recomendo, a não ser que vocês estejam numa terça feira à noite e ele estiver na televisão, vocês dois, sem ter muito o que fazer), era a história de um cara que também procurava algo como o sentido da vida e lá ele encontra a Morte, personificada num velho de cabelos brancos e olhos profundos, mas esse não era o ponto. A única coisa que realmente dei valor no filme todo e que por isso consigo me lembrar até agora é uma cena: o protagonista acorda numa árvore, pois andava à toa pelas ruas de Palermo, quando é acordado por um outro velho, com uma aparência muito dócil que me lembrou o Fiddler's Green do Sandman, ele disse uma frase, uma frase que quase peguei pra mim - "Nós devemos levar com uma seriedade mortal todas coisas da vida, menos nós mesmos." - naquela velha história de aproveitar cada momento da vida, é um clichê escroto quando você tenta por em prática, porque na verdade só usamos isso como desculpa pra quando for o caso de tomar alguma atitude precipitada, mas era isso o que precisava. Me entreguei por muito tempo a lamentos e queixas acompanhadas de observações semi-inteligentes sobre o jeito que as pessoas se comportam, eu precisava parar de pensar em viver e começar a viver, não que eu vivesse pouco mas a gente se cobra, não é ruim. Não era isso, não era isso, mesmo. Entendo o pessimismo, entendo muito bem, entendo também que as pessoas não possuem as melhores qualidades que poderíamos esperar delas, mas sabe, FODA-SE. Aquela cena, era um pouco do que eu precisava, depois descobri On the Road, que só afirmou o fato de que era isso mesmo. Lógico que não ia sair por aí despirocando (algo que eu já faço com alguma parcimônia), mas não ia fugir de casa, vender artesanato ou coisas assim, se a resposta fosse essa, tenha certeza, as pessoas já teriam isso faz tempo, mas não existe resposta e era isso que aquele maldito filme tava dizendo, era isso que minha cabeça por alguns meses tentou contrariar, nós somos vida, a nossa vida, e vamos todos algum dia enfiar nossas carcaças na terra, vamos feder, a não ser que nos cremem, vamos feder de um jeito insuportável, o cheiro de morte. Tudo isso pode parecer bem depressivo, niilista, escroto e juvenil (vá em frente, é mesmo), mas eu não queria morrer, entristecer-me já virou um pleonasmo, quanto ao escroto e juvenil, bem, é isso mesmo, eu sou escroto e juvenil. Até que nesses dias, olhando pra um ipê rosa, tentando extrair alguma coisa da natureza, a única que não muda, percebi que as árvores são umas das coisas mais misteriosas do universo, nos ramos floridos com pompons rosados percebi que todas as respostas que eu poderia tirar dali, as respostas exatas, eram biológicas, matemáticas, físicas, como já disse, eram exatas. Assim, as coisas humanas eram dotadas de um sentido muito sublime e bonito, nenhum, ou melhor, todos eles. Nesse mundo que é tudo, acendi um cigarro, tinha coisas a fazer, noites a dormir, mas o que era mais importante, eu respirava e olhava praquele ipê rosa como se fosse a coisa mais genial num raio de duzentos kilômetros, que se dane, eu não estava no cu do mundo, agora eu tinha certeza, o mundo é que era um cu.
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Finalmente consegui ter coragem pra escrever alguma coisa, mas não acho que tenha feito isso muito bem. Não tem quase nada de lírico nessa história a não ser meu eu. Esse foi um apanhado dos dias que não me senti exatamente bem, e pra falar a verdade, eles ainda não passaram direito. Os últimos meses foram tempos selvagens pra quase todo mundo que eu conheço. Tentei muito escrever, mas não fui feliz. Não tô com muita confiança de que vou voltar a escrever frequentemente, minha criatividade tem andado uma merda. Esse texto foi digitado ligeramente bêbado, mas sem música nenhuma. Mas recomendo The Black Angel's Death Song do Velvet Underground, que é uma das músicas mais chapadas que eu conheço. Sem mais