26.2.11

Pipocas.

É engraçado, de certa forma, como eu tenho uma tendência a superlativar as coisas. Tanto quanto é engraçado a forma que costumo me lembrar das coisas que não eram pra ter importância alguma, como a roupa de uma pessoa que passava enquanto algo marcante acontecia. Dessa vez cometi o mesmo erro com o cheiro de pipoca amantegada, mas é melhor, se for pra realmente dizer algo, que seja do começo. Nas cidades de poucos habitantes (pouco mesmo, só dando pra aceitar até os quinze mil) de tempo em tempo sempre acaba por aparecer, por iniciativa da própria cidade ou não, parques de diversões que por três, quatro dias paralizam a cidade nos pontos em que se instalam. Não tem um que não fique eufórico e cheio de expectativas quando o comboio de carros e pequenos caminhões aportam com suas parafernalhas de ferro em algum lugar espaçoso da vila e em pouco tempo estruturam brinquedos que, na visão de uma criança que, ainda não tendo um xbox360 passa a tarde jogando burquinha, são promessa de uma diversão sedutora e macia. A barca, o kamikaze e o bate-bate são, por assim dizer, pequenos ídolos de metal e fibra toscamente pintados nos quais aqueles que insistem em levar a vida em cidades que não existem voltam sua paixão e admiração. Chamo atenção aqui justamente para meu problema de atenção, não vou contar uma história sobre parques de diversão, mas é que por uma nostalgia inesperada acabei por me deixar levar por exageradas descrições. O fato é que ali estava o parque, no auge de seu primeiro dia, exibindo sua ilimitada imaginária imponência, e aquele que está parado vendo outras crianças descerem de um escorregador inflável gigante sou eu. Não reparem no físico de menino que levou a sério demais a propagando do biotônico, recomendo olharem mais perto e mais pra baixo, descendo pelo braço, minha mão direita, que nesse momento segura dois ingressos custando três dos cinco reais dados pelo meu pai. Aperto eles com força, morrendo de medo de os perder já que pra mim esses ingressos significam mais do que míseros (nem tão míseros assim naquela época) três reais. Eram, em verdade, o botão ígneo de um plano que eu havia traçado e revisado meticulosamente desde que havia sido informado da chegada do parque onde eu e os outros moleques que jogavam burquinha ou empinavam pipa conhecíamos por campão. Atento também para o fato de não olhar eu apenas "crianças descendo de um escorregador inflável gigante", dirigia especial acuidade a uma menina que naquele dia exibia uma bonita-de-se-ver trança que descia até metade das suas costas e uma genuína e atrevida camiseta rosa, não rosa ROSA, mas rosa meio clarinho. Caroline (e agora abro um longo adendo pra explicar que Caroline, não é nenhuma dessas carolines que se encontram por aí: cabelos castanho claro, só um pouquinho ondulado, a pele macia e branca de um jeito suave, relaxante, seu corpo não era da esbeltez digna de uma modelo e uma atriz, pelo contrário, era marcado por pequenas áreas ligeiramente mais fofinhas, o que provocava uma graça aos seus movimentos e expressões, o rosto se caracterizavam por apenas dois pontos, uma pinta não esperada localizada num lugar da bochecha que apenas as incertezas da genética poderiam acertar tão bem, e uns olhos, olhos que não eram daquele mundo, olhos que convidavam, acariciavam, beijavam e sorriam, olhos verde-jade, mas não pense no verde natural aos olhos, pense no verde natural à pedra preciosa, um verde que penetrava a alma, preenchendo-a. Caroline me tratava, na maioria das vezes, com a doçura de quem trata um bichinho [pena que só hoje sei bem disso], mas sempre mantendo o inevitável desprezo de um ser humano pertencente a um tipo superior. Nas aulas de arte, costumávamos fazer os trabalhos e no recreio nos deixávamos levar por algum assunto concernente à aula ou a pequena vida daqueles tempos) desfilava naquele escorregador vermelho, enquanto os bilhetes eram sufocados pelas minhas mãos. Desde quando a vira na fila de acesso ao brinquedo, não me dei ao esforço de me aproximar ou ter com ela qualquer tipo de contato, só encostei com os braços em uma grade qualquer e apreciava seus movimentos com minha visão e meus três graus de miopia. O plano, que já ia me esquecendo, foi posto em prática assim que o tempo de dez minutos (arredondados pra oito) destinado à diversão de Caroline no grande escorregador inflável se findara. Ela não estava acompanhada de nenhuma amiga ou de seus pais, o que achei um verdadeiro golpe de sorte, então me aproximei. Eu disse "Oi, tava legal esse brinquedo?" Ela disse "Tava, mas ficou pouco tempo" Eu disse "Vamo comigo na roda-gigante?" Ela disse "Não posso, meu pai só deu dinheiro pra um brinquedo." Eu disse "Eu tenho dois ingressos dá pra você ir comigo." Ela disse "Tá bom". Até agora, perfeito. Ela não me achou atirado demais, e acho que eu penteei meu cabelo de um jeito legal. Enquanto caminhávamos até a roda-gigante, nada dissemos, ela devia estar meio cansada por ficar subindoescorregando, eu não conseguia dizer nada, mesmo. Do lado do brinquedo havia uma carrocinha de pipoca, e achei que seria uma boa pegar um saquinho pra gente ficar comendo, afinal só custava um real, o que faria que me restasse ainda um. Então comprei a pipoca, e ofereci pra ela, que recusou gentilmente. Ofereci de novo pra ver se ela só não queria por educação, acabei até dizendo que a pipoca tava boa, mas não teve jeito, não. De todo modo entramos em uma das gaiolinhas e sentamos colocando a proteção, que consistia em uma barra de ferro vermelha, na nossa frente. Continuei comendo, a etapa do plano que se seguia ainda não estava na hora de ser executada. Tudo tranquilo. A roda-gigante funcionava, eu esperava o momento em que ela parasse um pouco a fim de que as pessoas admirassem durante um tempo a vista do alto, e ela realmente parou. Era aquele o momento que eu havia planejado, minha barriga com mais borboletas que o Jardim do Éden, tentava impedir o que eu tinha certeza que era obrigação de se fazer. Não deu outra, largando o saco de pipocas (o que levou Caroline a um pequeno susto), segurei as mãos mais macias de todo o universo pela primeira vez, e, em uma questão fracionária de segundo, pressionei meus lábios contra os de Caroline. Devo ter ficado assim uns três segundos, até que, constatando reação nenhuma sendo esboçada pela menina, voltei à posição anterior, encarando-a percebi que ela tinha imprimida no rosto uma impassibilidade de estátua. Eu tinha me preparado pra todos os tipos de cena possíveis e esperava, de verdade, que ela fizesse qualquer coisa, menos isso. Não demorou muito até que seus lábios, eu lembro, tremessem agitadamente e a boca fizesse aqueles movimentos de quando a gente vai chorar mas quer fazer de tudo pra não o fazer. Ela chorou, mas não pense você que foram aquelas lágrimas derrubadas por consequência de uma emoção arrebatadora, não... Caroline abriu o berreiro, tanto que o moço que cuidava da roda-gigante pôs-se rapidamente a tirá-la de lá. Eu, estático, não me recordo exatamente se ela saiu correndo chorando, se ela só saiu correndo, se ela foi chorando andando, ou se cessou o choro e caminhou através das pessoas, mas me lembro muito bem do cheiro rançoso e denso exalado do carrinho-de-pipoca, lembro dele entrando pelo meu nariz como um resumo de tudo que acabara de acontecer, acentuando minhas mãos sujas de óleo e meus lábios salgados. Fui pra casa, disse que tinha sido legal quando me perguntaram, menti sobre um segundo brinquedo que havia ido, deitei na cama com a luz acesa, os olhos abertos, e o cheiro de milho estralado perfurando meus pulmões.
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Tenho demorado com as postagens, e isso parte do pressuposto esperançoso de que alguém de algum jeito as espera, mas pelo menos tô escrevendo contos maiorezinhos e isso talvez seja um bom sinal. Se alguém vier pedir da música, deixei uma playlist repetindo com quatro: "Epilogue" do Antlers, "Cinco Minutos" de Jorge Ben e "House of Cards" e "Jigsaw Falling Into Place" ambas do Radiohead. Algumas coisas meio relevantes aconteceram, e tô pensando bastante em mim nesses dias, não de um jeito muito positivo. Essa história tem a ver com algo que rolou esses dias e o finalzinho tem os sentimentos meio inspirados num caso que o Paulo (que por acaso escreve sempre que o ócio permite no "Histórias de um Drogado") acabou de me contar. Longa Vida ao Desconstrutivismo.

PS1: Não tenha medo, em negrito estão links mágicos que te levam pra um outro lugar.
PS2: Ninguém fala amanteigado.

8 comentários:

  1. Li esse texto ao som disso aqui, recomendo: http://www.youtube.com/watch?v=KhuZwB_dFLI

    Sua escrita é muito visual (?), sabia? Dá pra imaginar tudo.E você começou a recomendar umas músicas boas, estranho.

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  2. giovano, pura visualidade!

    Descrição perfeita de "carolina", a maior vagabunda da historia do pequeno gordinho miope ^^''

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  3. cara tu é rápido mesmo essa da "carolina" foi ótimo. Curto muito The Antlers

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  4. a música é digna de se tocar nesses parques de diversões trash, mesmo, amanda. dá pra imaginar a cara pasma do protagonista enquanto a menina sai correndo e a música tocando meio abafada no fundo!

    brigado, guiga! e o que eu falei na calourada não era brincadeira, não! você ficou mesmo muito charmoso com aqueles óculos.

    paulo♥

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  5. Giovane a forma como vc descreveu o cheiro da pipoca me deixou completamente nauseada com a situação toda, tipo a reação do personagem não sabendo o que de fato ocorreu, se ela estava chorando ou simplesmente estatica...a mentira sobre ter sido legal, tudo isso e o cheiro nauseante da pipoca realmente se uniram de uma forma loukamente intensa.....e lembre-se de reservar um caderno ai na sua casa hahahah
    queijos e goiabadas para vc

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  6. Parques e rodas gigantes não são mesmo a minha =\
    Acho muito gueto dentro da aristocracia, ai tenso, mas sendo mesmo, febre
    o romance eu gostei, acho que a menina ficou mal também, vai saber o que ela não disse para os pais dela

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  7. Pode deixar, Mayra. Escreveremos um livro inteiro se nescessário!

    vai saber o jeito que ela não olhou pro menino depois...

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  8. Essa do The Antlers mata qualquer um, bela trilha sonora. Seu pressuposto de que alguém espera postagens é certa, pois dou sempre uma olhada para ver se você postou algo delicioso para ler.
    Essa história me lembrou dos tempos de criança
    É um ar estranho lembrar.
    Pois parecemos tão adultos e tão jovens agora...

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