10.9.11

Um parágrafo para João.

Milk it
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Em todo velório João permaneceu calado. As lágrimas escorriam por dentro. O cheiro enjoativo de flores e cera de vela nauseava-o, queria fugir. Horas a fio imaginou-se deitado no chão, imiscuir-se, boa sentença. Imiscuir-se, sentia-se, por vezes, muito velho, por vezes, muito novo, de todo modo, incapaz. A ladainha chorosa de senhoras católicas o confortava e, ao mesmo tempo, nele impelia um ódio abstrato, incitavam João a gritar, bater chorar. Não. João imóvel, só faltou morrer. Os pés cravados no chão sugeriram-lhe segurança, enquanto os artelhos movimentavam-se impacientes dentros dos sapatos pretos. Na boca roxa, João conservava a posição que alertava, deixando bem claro, nada sairia dali. Em vão parentes, "entes queridos", olharam-lhe nos olhos, não era ali que as vistas de João estavam e ele sabia muito bem disso. As lágrimas escorriam por dentro. As unhas agarravam o fundo dos bolsos, o futuro lhe preocupava. O que era agora sua família? Um irmão que a tudo lhe dizia sim (conquanto ele o louvasse) e outro que absorvia seus mais venenosos comentários como um monge budista e, passado um tempo, avançava contra João como um touro insandecido, três sobrinhos ligeiramente entediantes que lhe eram como figurantes em uma cena, uma ex-mulher nada amigável e um filho, qual não se lembrava nem a idade. E o que deixava João louco é que ele a nada disso estimava. Quis obstinadamente cada uma dessas coisas, se esforçando pra assumir cada um daqueles papéis e agora, tendo seus sonhos em mãos, dispensava-os ao passado, lembranças que conservou como boas, nada mais. Apalpava a carteira no bolso, pensando que seu dinheiro envenenava-o. A culpa concerteza era dos cartões de crédito que o impediam de ver a quantia exata que podia gastar. Cego, João gastava mesmo. As noites de bebedeira e alegria eram financiadas por cada um daqueles dígitos impressos em alto relevo. Cravou os dedos no couro do objeto, talvez fosse aquela coisa a que João tivesse mais apego. Era mesmo o mais lógico, afinal toda sua importância vinha de seu dinheiro. Nas reuniões de família, organizadas em sua casa, não era pra apreciar seu senso de humor bonachão que todos apareciam, e sim, para lhe pagar uma dívida que João, seus irmãos, os sobrinhos, primos, tias, sabiam que com dinheiro não iria ser paga nunca. Essa dívida - não estou sendo simbólico, não houve mês desde que João começara a emburguesar que não apareceu um parente vomitando suas lamúrias, lamentações e revéses financeiros para nosso amigo - ao contrário do que muitos pensariam, apenas repeliu a figura de João da dos outros membros de seu "clã". Esses passaram então a apontar, pelas costas, dedos que culpavam João da cada infelicidade que os afligisse, como se a responsabilidade da desgraça alheia fosse inteiramente de seu sucesso na vida. João absorvia essa carga de acusação, absorvia e sua consciência resignava e murchava. Defendia com a alma a crença geral de que era um filho da puta, um bosta que teve sorte, apenas, e era seu dever, afinal sorte não é algo digno de vanglória alguma, carregar cada um daqueles entes fracassados e que não tiveram sobre suas cabeças uma gota da urina da Prosperidade. Se realmente pudesse, João iria... O teto alto da capela o irritava, as luzes fluorescentemente intensas o irritava. Mas fazia muito sentido aquela iluminação de centro cirúrgico, havia de ser exposto, mesmo, a cara de impassibilidade de alguns visitantes. Realmente turistas que sorriam e cumprimentavam. Sua parca experiência com velórios fez João pensar que era letra morta dizer "meus pêsames" ou "minhas condolências", bobagem, vereadores e outras pessoas que se julgavam importantes e dignas de aparecer num funeral cumprimentando todos, davam aquele abraço de piedade forçada, e gritavam, urravam, cuspindo na cara de João: MINHAS CONDOLÊNCIAS!!! Nele também as condolências fervivalhavam por cada um daqueles farsantes, porque arrastar a bunda até um velório pra fazer social é coisa de quem não tem nada na vida a não ser o sentimento prazeroso e indolente de ser a única merda cujo cheiro agrada as narinas bondosas de deus. Cada aperto de mão era uma alfinetada maliciosa na paciência de João, que queria pensar o contrário "Não, muitos daqui já passaram por perdas, devem realmente, comovidos pela empatia de compartilhar de tragédia semelhante, terem vindo aqui pra me apoiar, deixar uma nota de cumplicitude". E João se animou com essa idéia até um senhor que contava gostosamente uma piada a alguns metros atrás de João vir lhe apertar a mão com aquela cara porca de enterro e dizer que sentia muito por tudo. TUDO O QUE!? MORREU ALGUÉM AQUI!?. Na cabeça de João, eram essas as palavras mais sensatas que poderia proferir, mas preferiu silenciar. Silenciar, sempre. Seu irmão agora jogava o corpo sobre o morto, soluçando e gemendo cada vez mais alto, até o ponto de perceber que fazia barulho demais, então recobrava folêgo tocava as mãos do cadáver, olhava os olhos colados do defunto, alisava sua testa, então recomeçava o pranto. João parado, os artelhos agitados no sapato, sentia uma vontade profunda de chorar, mas as lágrimas escorriam por dentro, acumulavam-se nos pulmões, debilitavam a respiração. Era nescessário o líquido pras pessoas terem certeza de que sofria, era nescessário os olhos inchados de tanta água pra terem certeza de alguma lamentação, só que João era seco. Desértico, apalpou no outro bolso o maço de cigarros, levou um na boca e debochou de toda aquela merda. Árido, achou o significado daquilo no crucifixo fixado acima do caixão. Um jesus cristo esquelético, redentor e martirizante. O irônico é que sua cara foi deformada por metal fundido, a boca era uma mancha de ferro escandalosa e os olhos tristes pareciam tristes não pela cruz, mas pelo silêncio. João era aquele jesus mal feito e mudo, incapaz de proferir uma palavra, nem se ganhasse vida, João também não ressuscitaria no terceiro dia, com sua boca de metal derretido, resumido em mudez e estática. Olhava com raiva aqueles que testemunhavam um homem fumando onde não era pra fumar, e sentia mais raiva ainda vendo que ninguém se sentia apto a dizer "Não pode fumar aqui", ah se o fizessem... Aproximou-se do caixão e foi a única vez que olhou de verdade para o seu pai, não como o homem que lhe batia quando criança, repreendia-o quando adolescente e adulava-o quando adulto. Mas o homem que trabalhou vinte e oito anos como auxiliar num laticínio, gostava de beber, se separou da mulher depois da segunda traição descoberta e sonhava desde que casara em ganhar na mega-sena. Os planos de mudança com todo o dinheiro, iria dar fazendas de gado para cada neto e duzentos mil reais para cada filho, ele não ganhou. Mas ganhou uma hérnia de disco, uma depressão psiquiatricamente atestada, várias receitas de remédio pra cada dorzinha que sentia, indícios de mal-de-Alzheimer e agora, no finalzinho, um caixão de mogno muito bonito com um jesus cristo de boca de ferro derretido. Tocou nas mãos do pai, o último dos raros momentos de afeto entre os dois, tarde demais para ressentimentos ou desculpas, João repulgnava o fato de considerar escusar-se para um corpo. Deixou o cigarro cair no chão e saiu com a cabeça baixa, sem a mínima intenção de se despedir de alguém. O previsto para acontecer, previu facilmente, era que, saindo dali, moveria-se pra casa, abriria com toda tranquilidade do mundo a porta - pois cada ação lhe era cara - limparia os pés no tapete, descansaria os óculos na cômoda, e beberia - uma a uma - cada garrafa do bar, embriagaria-se aos prantos, engolindo a culpa em goles sonoros (não pelo defunto, mas porque se sentia culpado), pensando no quanto era um filho-da-puta e se amava por isso, olharia seu reflexo no espelho e se sentiria ridículo, desfigurado, farsante. Depois, vomitaria nas calças, no chão, nos braços, exibindo um sorriso anestesiado e satisfeito.
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3 comentários:

  1. Acho que "Tédio" é a palavra que resume a vida de João, e olha que nem conheço ele!!

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  2. Você podia ser mais romântico e dizer melancolia, mas é basicamente isso, mesmo.

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