10.7.11

Alma.

Alma acordou cedo, umas oito horas, pôs os pés nos chinelos almofadados e vestiu um robe azul bem clarinho. Acordou bem disposta, escovou os dentes e entrou debaixo da água quente do chuveiro. Enquanto se lavava, sentia satisfeita o líquido escorregar corpo abaixo, pensou no que iria fazer até o almoço, decidiu que iria comprar uma blusa que namorara a pouco tempo atrás numa loja do centro. Estampa de flores, muito bonita. Sai do banho, veste novamente o pijama e o robe. Em direção à cozinha, dá pouca atenção ao quadro da parede que ela mesma pintara, lembra muito bem que idéia tinha na cabeça quando o fez. Queria uma paisagem que a conquistasse sempre que olhasse para o retrato, conseguiu um campo de trigos e um pôr-do-sol muito bonito, mas nenhum dos dois cumpriu com o desejado por muito tempo.
Pegou um balde e um rodo na área de serviços, despejou Veja no balde azul e depois um pouco de água. Começou a limpar todos os cômodos da casa. O quarto do casal, o quarto das meninas, a sala de visitas, a sala mesmo, o escritório, os banheiros e a cozinha. Era mais ou menos quinze pras dez quando terminou. As meninas acordaram e agora assistiam desenho na sala, Alma também gostava de desenhos. Sempre achou fantástico animais falando e coisas impossíveis que aconteciam sem parar. Sentou-se um pouco no braço do sofá maior pra descansar, enquanto observava gostosamente seus anjinhos. Isabela e Mariana tinham, respectivamente, seis e nove anos, verdadeiros amores. Sempre faziam perguntas sobre tudo, e essa era a fase que a mãe achava mais bonita. Cheias de curiosidade, as crianças punham vivacidade em tudo que faziam, a mais nova ainda tinha medo do escuro e adorava coisas rosas. Mariana por sua vez era um pouquinho mais calada, gostava de atenção, mas quase nunca procurava por ela. Alma não sabia onde terminava seu amor pelas duas.
Passado alguns minutos, buscou no tanque um paninho pra tirar a poeira dos móveis. Limpou o raque, as prateleiras, a cômoda, a estante, a escrivaninha, tentando sempre fazer um trabalho perfeito. Realmente o fez, olhou com satisfação pra casa limpa, teve consigo que cada cômodo da casa, o jardim, as crianças e mesmo os afazeres domésticos eram exatamente aquilo que a alguns anos atrás almejara pra ela. Não ligava pros vários defeitos que sua vida tinha, se não apareceu nenhum ainda, é porque Alma realmente não se importava com eles. Mas bem, a casa estava limpa, e tinha algum tempinho com as meninas. Ajudou Mariana a fazer o dever de casa, era boa com matemática, enquanto Isabela desenhava várias figuras diferentes e mostrava pra Alma, que sorria e elogiava cada desenho com uma sinceridade que só as mães tem.
Na cozinha, cortou as cenouras em tirinhas e deixou-as cozinhando, aprontou o arroz e o feijão e fritou alguns bifes. Adorava aquele cheiro de comida sendo preparada, o aroma lhe trazia lembranças da primeira casa que morou, no sítio. O piso encerado, a brisa macia que entrava pelas janelas abertas, as costas e o vestido de ficar em casa de sua mãe. Alma sentiu saudade da grama verde na frente da casa de madeira e de ficar deitada lá, olhando as nuvens ou imaginando as coisas na cidade. Sentiu saudade das mãos sujas e duras de calo de seu pai, que suspendiam-na no ar quando esse chegava para o almoço. Ou da forma que mãe e pai discutiam durante a refeição, sempre sobre bobagens, falando do comportamento de uma ou outra pessoa. Sua mãe com uma paciência que aceitava tudo e seu pai com um senso de julgamento talhado na madeira. Gostava de olhá-lo enquanto ele bebia café e da forma que falava das coisas que fizera pela manhã. Cercas consertadas, bombas d'água arrumadas, bezerros que morriam de picada de cobra. A tudo Alma ouvia atenta, com uma admiração visível em seus olhos de criança.
O marido chegara, Carlos, a camisa branca, a calça preta e os óculos de armação redonda. O olhar terno e ligeiramente cansado. Professor, bom homem. Nunca vira-o dando aulas, mas podia imaginá-lo lecionando com sua voz grave e macia, enquanto percorria com os olhos pretos a sala toda. Casaram-se quando Alma completou vinte anos, depois de um ano e dois meses de namoro. Naquela época andavam de mãos dadas por onde quer que fossem, conversavam mais ou menos sobre tudo que imaginavam para o futuro e riam mais ou menos de tudo do presente. Alma amava-o, muito. Enquanto comia, pensou o que seria abandonar aquela família, a vida simples e bonita que levava. As cores e as coisas que tinha dentro de casa. As meninas. Carlos comentava as notícias do jornal, se indignando aqui e ali, com a indignação de um pai de família com trinta e dois anos e professor de ensino médio. A mulher escutava cada palavra, por vezes fazia companhia às críticas do marido e comentava também sobre o que as crianças tinham feito.
Depois do almoço, Carlos lavava os pratos enquanto Alma ajudava Isabela e Mariana a se trocarem para a aula. Se despediu delas no carro com um beijinho no nariz de cada uma, as duas sorriam. Ao marido, dispensou um leve beijo nos lábios e depois fechou o portão. Entrou em casa, pegou na cozinha uma cadeira e levou até seu quarto, alcançou na parte de cima do guarda-roupa uma mala de viagem. Pegou algumas roupas, dobrando delicadamente cada peça, ajeitou-as na mala. Guardou o perfume, algumas calcinhas, a roupa de dormir, a escova de dentes. Vestiu calça jeans, camiseta e sandália. Chamou o táxi. Enquanto esperava, sentou-se no sofá com a televisão ligada, revisando mentalmente se estava levando tudo o que precisava. Depois tirou umas roupas do marido que secavam no varal. Deixou-as em cima da mesa pra que essas fossem passadas assim que possível. Trancou a porta dos fundos, desligou a tv, o táxi chegara. No caminho até a rodoviária, Alma lembrou de novo da velha casa de madeira, da égua branca, Estrela, e das frutas que colhia no sítio. Lembrou do marido bem apessoado e cavalheiro, das crianças tão bonitas e angelicais. Realmente, Alma conseguira tudo aquilo que sonhou quando moça. Um bom marido, filhas lindas, uma casa aconchegante e própria. Tinha conseguido muita coisa, à base de muita Alma. Não hesitou um momento se quer, nunca pensara em outra forma de vida se não aquela. E agora, Alma sentia um vazio, um vazio que não era dela. Racional, sentimental, emocional. Vazio como o por-do-sol no campo de trigo.
Na rodoviária, minutos antes de tomar o ônibus ligou de seu celular para Carlos, que ainda não havia entrado em sala. Disse-lhe onde estava a carta e desligou o aparelho. Alma chorava sem fazer barulho, sem mudar de expressão, mas Alma inteira era lágrimas.
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Sem mais, nem menos. Ouça.

4 comentários:

  1. Alma tinha tudo que sempre desejou, filhos, marido, casa pra cuidar, mas o que lhe faltava, emoção talvez, uma vida onde ela pudesse sair da rotina...não que ela não gostasse do marido ou dos filhos, ela simplesmente percebeu que cedo demais na vida quis constituir familia e filhos e acabou esquecendo de viver mais....porém caro amigo teria ela sido covarde ao ligar pra Carlos se despedindo e dizendo por celular que tinha uma carta pra ele que explicava tudo...quem sabe, so a doce Alma pode saber....e a musica perfeita pra mostrar o que ela sentia...pra quem não tava inspirado , esse post saiu perfeito como sempre...bjo

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  2. Ela não conseguia entender como tudo aquilo podia ser bom pra ela, apesar de entender que devia amar aquilo, emoção, com certeza. Obrigado, Mayra. Adorei essa crítica.

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  3. Seguindo :)

    Se puder retribuir, ficarei grata!


    Um bjoo


    Nah

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  4. "Em direção à cozinha, dá pouca atenção ao quadro da parede que ela mesma pintara, lembra muito bem que idéia tinha na cabeça quando o fez. Queria uma paisagem que a conquistasse sempre que olhasse para o retrato, conseguiu um campo de trigos e um pôr-do-sol muito bonito, mas nenhum dos dois cumpriu com o desejado por muito tempo."
    Eu achei que já tinha sido muito tenso isso, e como alguns textos seus, a bela narrativa conduz para uma quase tragédia esperada no final...
    Adoro você descrevendo o cotidiano!

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