3.1.11

Eu te amo, Haldol.

Aprontava para que tudo estivesse perfeito. Escolhera o tema: Peter Pan, e como Sininho brilhava com elegância pela área livre do salão, aqui e ali dava dicas de como queria sua decoração. Wendy fora posta perto do bolo, ao lado do próprio Peter, enquanto os Meninos Perdidos decoravam junto de animais e árvores frutíferas todas as paredes do ambiente. Gancho e Tic-Tac paralisados representavam, respectivamente, fuga e perseguição. O bolo cheio de um glacê que mesclava verde-musgo e verde bem clarinho como seu vestido, recheado, entre as camadas de pão-de-ló, com o melhor chocolate que a padaria poderia oferecer. Em seu topo, a turma do conto de fadas da Disney ilustrava com sorrisos verdadeiramente sinceros uma dança estática: um ali com o pézinho erguido, outra segurando as pontas da saia, Peter bradando sua espada de madeira enquanto hipotéticamente sapateava sobre aquele verde "Palmeiras New School", os meninos perdidos esboçavam caretas, cada uma delas melhor do que a outra. João e Miguel feriam seus rostos de cera com expressões de dúvida e bravura. Certificava-se ela de que os salgadinhos iriam chegar todos no horários, sem um segundo de atraso, para que ficassem quentes o bastante para todos os convidados que tivessem a barriga roncando por uma esfiha, risólis, coxinha de carne e de frango, bolinha de queijo, pastelzinho de carne, cachorro-quente e empadinha. Não poderia esquecer dos doces, e quem se esqueceria dos doces com um um Peter Pan de quase dois metros de altura apresentando-os com uma larga gargalhada de dentes brancos e (de novo!) espadinha de mentira. O mellhor da técnica de manufatura em beijinhos, brigadeiros, cajuzinhos, olhos-de-sogra e o caralho a quatro. Uma faixa de aniversário recebia os convidados: PARABÉNS, MARCIA! Tudo como devia ser. Seu vestido, costurado por uma tia muito boa com máquina/olho/e agullha, ótima costureira, era como o de Tinker Bel (ou Sininho mesmo, né, escritor babaca?), um tomara-que-caia verde que seguia até o comecinho do joelho, terminando em babados que folhiformemente se ajustavam às suas pernas, as costas livres, é claro, numa abertura que quase-quase-quase beirava o cocs, mas "pelo-amor-de-deus, né?" ainda estamos numa festa de aniversário. Havia marcado para as 19:30, sabia que todo mundo acabava chegando às nove, mesmo. Sem problemas, seus amigos eram todos descoladíssimos e nós, descolados que somos, sabemos que ninguém com meio dedinho de estilo chega em cima da hora marcada. Coisa pra bobos, e Márcia sabia muito bem disso, por que não saberia? O Dj contratado, pago meio a meio (parte de seu suadíssimo dinheiro e parte da aposentadoria de sua mãe) tocaria o melhor das canções de sua época, essa época, todas as épocas, bélle épocque. Morria de nervosismo, queria tudo perfeitamente perfeccionistamente perfeito, e só não roía as unhas pra que elas não estragassem, mesmo. Porque se fosse pela ansiedade roeria uma a uma, unhinha por unhinha (e a fonética que se foda!). Há tanto queria isso, essa festa rondava em seus sonhos, três semanas de noites mal-dormidas, planejando chapéuzinho, óculos bregas, aqueles negócinhos (também brega) plumozinhos de passar em volta do pescoço, todos de todas as cores. Cervejinha pros amigos chegados naquela loira, ela também até gostava, não muito, dois copos lhe subiam a cabeça o suficiente. E Coca-cola não faltava praqueles safadinhos abstêmios não-bêbados, mas que sempre davam um jeito de se animar e animarem qualquer festa. Parecia tudo nos conformes, o moço da câmera fotográfica que iria tirar fotos e gravar já estava ali, Márcia adorava pontualidade, nos empregados. Podia começar, podia começar. Antes iria dar uma passada na casa da Letícia, dar os últimos retoques no penteado, que criticamente, firmemente, rigidamente escolhera nas melhores revistas que lá pelos cinquenta reais poderiam comprar de uma vez. Iria entrar quando começasse a tocar Whiter Shade of Pale do Procol Harum, algumas horinhas só, minutinhos a esperar. Márcia mordia os lábiozinhos pequenos, louca de angústia, e uma pressão arterial de estourar veia de guaxinim, qualquer güaxinim (com trema ou sem trema, o professor Pasquale não pode me corrigir, HAHAHAHAHA, FUCK YOU OFF, PASQUALE!) .
Finalmente a festa. Como esperado, os convidados foram se chegando lá pelas oito e meia, nove horas. Elisa "sempre com o nariz empinado, não mudava nunca", Flávio "rapaz inteligente, pena que não sabia nada sobre a vida, bonitinho até", Roberta "ela ia atacar aqueles brigadeiros, gorda!", Denise "amigo é os denti, Denise fez ela saber disso rapidinho", Franciélly, Patrícia, Vânia, Vera Lúcia, Fátima, Cida, João Roberto, Carlinhos, Cézar, Mauro, Débora, Salete, Antônio, Gilberto, Francisco, Ludmilla, Berê, José, Fernando, Joca, Matias, Geno... na verdade (como vocês puderam perceber ao pularem essa parte) eram só nomes pra Márcia, um outro desafetozinho, quem ela esperava insadecidamente, como uma líder de torcida americana, era Renato, desde o Ensino Fundamental, seu grande amor platônico. Planejara toda aquela festa não praquelas pessoas, que seriam apenas atores coadjuvantes no cenário que havia fantasiado em sua mente, mas para aquele rapaz de cabelos castanho-claro, olhos de mistério e um sorrisinho meio amarelo, meio sincero, bonito de dar inveja a qualquer pseudo-gatão da sua época. ele chegara um pouco antes do Michel, como todos, viera a caráter, e era o Peter Pan mais bonito que Márcia, tinha certeza, veria em toda sua vida. Ele cumprimentara ela com um beijinho no rosto (e que lábios eram aqueles, Senhor?), sentara-se na mesa de seus velhos amigos e, enquanto Márcia percorria o salão conversando e recebendo convidados, direcionava olhares maliciosos para o seu vestido, que cumpria com o propósito de sua costura. Quando fazia aquela "social" na mesa de Renato e seus amigos, Marcia puxou seu rosto um pouquinho pro lado e sussurrou no ouvido "Hoje a noite é nossa", ele sorri, e põe a mão de levinho em suas pernas, era a confirmação que Márcia precisava. Durante o resto da festa foi só felicidade, os salgadinhos, como a moça tanto queria, estavam quentinhos e crocantes, os doces, pequenos pedaços do paraíso em forma de delícias açucaradas. O Dj tocara todas as músicas que Márcia rigorosamente selecionara, rigorosamente, mesmo. Uma a uma, mas que beleza de perfeccionismo, hein, Márcia? Chegava então a hora da valsa e a moça se tremia de nervosismo, iria, é claro, dançar com Renato e borboletas dançavam prematuramente em seu estômago. Whiter Shade of Pale era a música que começava e terminava a festa, e que música era essa! Quando o momento foi anunciado, ele de pronto se levantou e foi em direção à Márcia, que o esperava com um sorrisinho sem graça - And so it was that later/As the miller told his tale/That her face, at first just ghostly/Turned a whiter shade of pale - dançaram levemente, docemente, suavemente no centro do salão. A mão de Paulo em sua cintura, e as palavras que ele sussurrava só pra ela. Deixava-o guiar por toda a música e aqueles poucos minutos foram pra Márcia, a inteira eternidade de um sonho, ela sorria, ele sorria, e que belo casal os dois juntinhos não formavam? No fim da música, os dois ainda continuaram dançando, enquanto todos olhavam em direção ao centro, ao par. "Ele tomou ela em seus braços e a beijou" - disse o narrador das antigas novelas de rádio. Márcia fez daquele beijo, tudo em sua vida, e devorou Márcio em sua mente, com sua boca, arrancava cada pedacinho de sua alma, cada átomo de oxigênio que o rapaz insistia em respirar. Terminaram com gritos e aplausos de todos. Era como Márcia sonhara e, naquele momento, cada segundo de sua vida fora retomado em milésimos, desde a primeira vez que o vira, na quinta série. Era perfeito, como ela queria. Ele propôs baixinho que ela fosse à sua casa, mas ela educadamente recusou (era seu aniversário, dava-se direito ao charminho).
Quando a festa então acabara e outros paradisíacos beijos em Renato, Márcia havia dado, depois de ter ajudado na limpeza do salão e pago, cédula por cédula tudo o que devia ser pago aos garçons, cozinheiros e demais empregados do buffet, Márcia fora sorrindo pra sua casa. Lá, tirou na frente do espelho seu vestidinho verde de sininho, removeu a maquiagem com água e um pouquinho de leite de Colônia. Sorria bobamente pra tudo que lhe diziam, nada poderia estragar aquele dia. Na cozinha, foi até a geladeira e tornou água da jarra no copo, pegou seus remédios no baúzinho do armário de cima. Zyprex, Rivotril, Fluoxetina e Príncipe Haldol, não demorou muito para os efeitos virem e Márcia, em sua cama, mergulhar calmamente num êxtase de sono. Dormira sonhando, pois seu aniversário de quarenta e cinco anos, foi, com toda a certeza, o melhor aniversário de sua vida.
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As músicas da Márcia: a famigerada Whiter Shade of Pale e essa é pra ela mesmo Burger Queen do Placebo. Depois de um século sem vontade de escrever qualquer coisa, saiu esse vômito aí, espero que gostem, é a última que morre, né? Devo ter perdido todos os meus três leitores. = / Boa tarde pra vocês.

5 comentários:

  1. Imaginei a história toda acontecendo com a minha mãe ):

    A WHITER SHADE OF PALE

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  2. Se ela tem um poster com os personagens de glee ou joga café mania ou colheita feliz por mais de uma hora por dia, já é bom começar a se preocupar. huahuahuah

    essa música é tão bonitinha, que deu até dó de gastar num conto sobre o que esse é... fazer o que.

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  3. que lindo, adorei *-*
    eu pensei q não ia ninguém na festa mas, o fato de ela ter 45 é pior...
    o que aconteceu com o cara, sumiu...
    que mulher pirada, adoro essas pessoas...

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  4. caracoles giovane não imaginaque tu escevia tão bem, adorei. Fiquei o tempo todo imaginando uma garotinha até chegar as drugs, surpreendente.

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